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sexta-feira, 25 de abril de 2008

ALEITAMENTO MATERNO E CÁRIE DO LACTENTE E DO PRÉ-ESCOLAR: UMA REVISÃO CRÍTICAÇ

S199
1. Especialista em Odontopediatria pela SOBRACID.
2. Pediatra neonatologista, Hospital São Lucas, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pós-graduado em Gestão em
Saúde pela PUCRS.
Como citar este artigo: Ribeiro NME, Ribeiro MAS. Aleitamento materno
e cárie do lactente e do pré-escolar: uma revisão crítica. J Pediatr (Rio J).
2004;80(5 Supl):S199-S210.
Abstract
Objective: To find scientific evidences that can prove or refute the
assumption that nocturnal and on demand breastfeeding are associated
with caries in infants and preschool children.
Sources of data: MEDLINE, Lilacs, and SciELO articles were
searched, as well as important internet sites, technical books and
consensus publications of national and international organisms. The
following keywords were used: “early childhood caries”, “dental caries”,
“dental decay” and “breastfeeding”. References cited in the articles
selected were also included.
Summary of the findings: Studies associating caries with
breastfeeding invariably observe factors associated with how this
disease develops, letting aside those associated with breastfeeding.
Many of these factors act as confusing variables because in the same
way as they interfere in breastfeeding, they also influence the
development of caries. Besides, current studies have already
demonstrated the cariogenic potential of some types of aliments given
to children against the non-cariogenic potential of the human milk.
Conclusions: There are not scientific evidences proving that the
human milk can be associated with the development of caries. This is
a complex relation to be established, as it is often blurred by too many
variables.
J Pediatr (Rio J). 2004;80(5 Supl):S199-S210: Early childhood
caries, dental decay, breastfeeding, risk-factors.
Resumo
Objetivo: Buscar evidências científicas que comprovem ou refutem
a afirmação de que o aleitamento materno noturno e em livre
demanda está associado com cárie do lactente e do pré-escolar.
Fontes dos dados: Foi realizada busca de artigos científicos
utilizando-se as bases de dados MEDLINE, Lilacs e SciELO, páginas
de internet relevantes, livros técnicos e publicações de consenso de
organismos nacionais e internacionais. As palavras-chave utilizadas
foram: early childhood caries, dental caries, dental decay e
breastfeeding. Percebida a relevância, também se buscou diretamente
as referências indicadas nos artigos encontrados.
Síntese dos dados: Os estudos que relacionam a cárie com o
aleitamento materno invariavelmente só observam os fatores interrelacionados
com o surgimento dessa doença, deixando de lado aqueles
associados à amamentação. Muitos desses fatores atuam como variá-
veis de confusão porque, do mesmo modo que interferem no aleitamento
materno, também têm influência no surgimento da cárie. Além disso,
estudos atuais têm demonstrado a cariogenicidade de vários alimentos
dados às crianças e a não-cariogenicidade do leite materno.
Conclusões: Não há evidências científicas que comprovem que o
leite materno possa estar associado com o surgimento de cárie, sendo
essa relação complexa e confundida por muitas variáveis.
J Pediatr (Rio J). 2004;80(5 Supl):S199-S210: Cárie do lactente e
do pré-escolar, cárie precoce na infância, cárie de estabelecimento
precoce, aleitamento materno, fatores de risco.
Aleitamento materno e cárie do lactente e do pré-escolar:
uma revisão crítica
Breastfeeding and early childhood caries: a critical review
Nilza M. E. Ribeiro1, Manoel A. S. Ribeiro2
0021-7557/04/80-05-Supl/S199
Jornal de Pediatria
Copyright © 2004 by Sociedade Brasileira de Pediatria ARTIGO DE REVISÃO
A cárie dentária permanece como a doença infecciosa
mais comum em crianças, estimando-se que, nos Estados
Unidos, tenha uma prevalência cinco vezes maior que a da
asma e sete vezes maior que a da rinite alérgica1,2. É uma
doença prevenível, e sua prevenção inicia-se no consultório
pediátrico3. Embora o pediatra seja o principal responsável
pela promoção da saúde oral da criança, poucos artigos
científicos com foco nesse assunto têm sido publicados em
revistas pediátricas2,4.
A cárie é uma doença infecciosa induzida pela dieta e,
apesar do declínio mundial em todas as idades, em especial
pela utilização do flúor, sua prevalência permanece estável
na dentição decídua5-7, ou seja, no grupo de 20 dentes que
se formam entre 12 e 18 semanas de vida intra-uterina e
erupcionam, em média, entre 7 e 30 meses de idade8-10.
Persiste como um sério problema de saúde pública, e o seu
controle deve ser prioridade, pois pode levar à má-oclusão
dos dentes permanentes, causar problemas fonéticos e
diminuição da auto-estima11,12. Também foi demonstrado
que a cárie dentária pode diminuir de forma progressiva o
ganho de peso da criança, o qual poderia ser revertido após
uma completa reabilitação bucal13.
A prevalência da cárie na população em geral é incerta,
pois diferenças metodológicas têm gerado dificuldade para
comparar os vários estudos entre si11,14. No Brasil, o
S200 Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(supl), 2004 Aleitamento materno e cárie – Ribeiro NME e Ribeiro MAS
Projeto de Saúde Bucal - 2003 mostrou que 27% das
crianças de 18 a 36 meses e quase 60% das crianças de 5
anos de idade apresentavam pelo menos um dente decíduo
cariado. Em média, uma criança brasileira com até 3 anos
de idade já possui, no mínimo, um dente com experiência de
cárie; aos 5 anos, esse valor aumenta para quase três
dentes. Grandes diversidades regionais são percebidas em
todas as idades, com as regiões Norte e Nordeste apresentando
percentuais de dentes hígidos inferiores quando
comparados com as regiões Sul e Sudeste15.
Na odontologia, é quase um consenso que o aleitamento
materno em livre demanda, especialmente à noite e com
duração prolongada, provoque cárie10,11,16-18. De modo
semelhante, na pediatria, já existem publicações adotando
essa mesma posição7,19. A Academia Americana de Odontopediatria
(AAPD) declarava haver um risco potencial
devastador de cárie por aleitamento para crianças alimentadas
ao seio e com mamadeira, estando este risco relacionado
à alimentação prolongada e repetitiva sem o acompanhamento
de medidas de higienização oral apropriadas,
sendo os pais encorajados a oferecer líquidos em copo para
o seu filho próximo ao seu primeiro aniversário e a retirar
a mamadeira entre 12 e 14 meses de idade20. Sem definição
precisa, os termos “exposição prolongada” e “desmame”
tiveram interpretações diversas, culminando com os odontologistas
aconselhando o desmame, inclusive do leite
materno, antes de 1 ano de idade. Ao desencorajarem o
aleitamento materno prolongado e em livre demanda10,19,21,
esses profissionais desconsideram todas as vantagens já
bem documentadas do aleitamento materno e a recomenda
ção da Organização Mundial de Saúde (OMS) de manuten
ção da amamentação até os 2 anos ou mais22. Do mesmo
modo, a Academia Americana de Pediatria considera que as
crianças que dormem com mamadeira ou mamam no peito
durante a noite são de alto risco à cárie2,23.
Em razão disso, a presumível cariogenicidade do leite
materno é assunto de significativa importância, porque
este, juntamente com seus substitutos lácteos, é a principal
fonte nutritiva nos primeiros anos de vida24,25. No presente
artigo, os autores apresentam uma revisão da literatura
sobre o tema, analisando os vários estudos epidemiológicos
que investigaram uma possível relação entre aleitamento
materno e cárie.
Conceituação
A expressão early childhood caries, traduzida para a
língua portuguesa como cárie do lactente e do pré-escolar
(CLPE), é atualmente utilizada em substituição às express
ões cárie da mamadeira e cárie do aleitamento materno7,26,27.
A literatura não apresenta uma definição universalmente
aceita para a CLPE12,14,28, porém a AAPD considera
CLPE como a presença de qualquer superfície de dente
decíduo cariada (cavitada ou não) ou perdida (devido à
cárie) ou obturada em crianças menores de 6 anos de idade.
Com essa conceituação, adotou-se a expressão cárie severa
do lactente e do pré-escolar (CSLPE) em substituição à cárie
rampante quando na presença de pelo menos um dos
seguintes critérios: a) qualquer sinal de cárie em superfície
lisa em crianças menores de 3 anos de idade; b) qualquer
superfície lisa de dente decíduo ântero-superior cariada ou
perdida (devido à cárie) ou obturada, em crianças dos 3 aos
5 anos; c) índice de superfície cariada, perdida ou obturada
(ceo-s) igual ou superior a 4 aos 3 anos, a 5 aos 4 anos e
a 6 aos 5 anos29. Diferentemente dessa definição, a OMS
não considera a presença de lesões não-cavitadas na
composição do índice ceo-s22.
Etiologia
A cárie é considerada uma doença infecto-contagiosa,
multifatorial, desencadeada por três fatores individuais
primários: microorganismos cariogênicos, substrato cariog
ênico e hospedeiro (ou dente) suscetível29. Esses fatores
interagem num determinado período de tempo, levando a
um desequilíbrio no processo de desmineralização e remineraliza
ção entre a superfície dentária e a placa (biofilme)
adjacente5,30.
Microorganismos cariogênicos
Os principais microorganismos causadores da cárie são
os estreptococos do grupo mutans, especialmente o Streptococcus
mutans e o Streptococcus sobrinus7,10,30. Esses
patógenos são capazes de colonizar a superfície do dente e
produzir ácidos em velocidade superior à capacidade de
neutralização do biofilme em ambiente abaixo do pH crítico
(menor que 5,5), permitindo a dissolução do esmalte9,10,19.
O principal reservatório dos estreptococos do grupo mutans
é a cavidade oral, e a infecção da criança depende do nível
de infecção da mãe ou da pessoa que mais tiver contato com
ela7,10,29-31. Foram também descritas transmissões horizontais
em berçários de creches e intrafamiliares31,32. A
gravidade da CLPE está diretamente relacionada à precocidade
da instalação dos estreptococos do grupo mutans na
criança10,30.
Admite-se que essas bactérias necessitem de superfícies
não-descamativas para colonizar, porque sua positividade
aumenta com o número de dentes erupcionados e com
a idade30. No período denominado “janela de infectividade”,
o qual corresponde à erupção dos incisivos inferiores (6
meses) e dos molares superiores (24 meses), há maior
aquisição de estreptococos7,9,10.
Outros microorganismos envolvidos, como os lactobacilos,
encontram-se associados à progressão de uma lesão já
instalada, e não à iniciação da cárie propriamente dita8,30.
Dieta cariogênica
A sacarose é o alimento cariogênico mais importante e
mais amplamente utilizado pelo homem. Tem o poder de
transformar alimentos não-cariogênicos e anticariogênicos
em cariogênicos6,7,19. Outros açúcares envolvidos na cariog
ênese são a glicose e a frutose, encontrados no mel e nas
frutas6,9,31. Uma simples exposição aos alimentos cariogê-
nicos não é fator de risco para cárie, e sim o freqüente e
prolongado contato desses substratos com os dentes6.
Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(Supl), 2004 S201
Hospedeiro suscetível
Os fatores de risco do hospedeiro para o desenvolvimento
de cáries são: esmalte pós-eruptivo ainda imaturo;
presença de defeitos no esmalte, caracterizados especialmente
pela hipoplasia5,9,11,19,30; morfologia e características
genéticas do próprio dente (tamanho, superfície, profundidade
de fossas e fissuras); e apinhamento dentário9.
A saliva é o principal sistema de defesa do hospedeiro
contra a cárie, removendo alimentos e bactérias, mantendo
um sistema tampão contra os ácidos produzidos, sendo um
reservatório mineral de cálcio e fosfato (necessários para a
remineralização do esmalte) e possuindo substâncias antibacterianas9,10,19,30.
As situações individuais que diminuem
o fluxo salivar e, conseqüentemente, sua capacidade
tampão, tal como ocorre durante o sono das crianças,
aumentam a suscetibilidade do dente à cárie19,30,31.
A manutenção constante do flúor na cavidade bucal é
importante para a resistência do esmalte, interferindo na
dinâmica do processo de cárie, reduzindo a quantidade de
minerais perdidos durante a desmineralização e ativando
a resposta na remineralização6,11. Na realidade, o flúor
não impede o surgimento da cárie, mas é extremamente
eficiente em reduzir a sua progressão, devendo ser
enfatizado o controle da placa dental e da dieta para
maximizar o efeito desse mineral. A freqüência diária de
escovação dentária com dentifrício fluoretado e a escova-
ção antes de dormir são importantes medidas para o
controle da doença, pois mantêm a concentração de flúor
na saliva por um período maior6.
Assim, a cárie começa com a infecção primária pelos
estreptococos, seguida pelo acúmulo destes dentro do
biofilme em concentrações patogênicas, secundária à exposi
ção freqüente e prolongada a uma dieta cariogênica. Por
fim, a fermentação de açúcares pelos estreptococos no
interior da placa dental causa a desmineralização do esmalte,
resultando na cavitação das estruturas dentárias9,11,29-31.
O processo da cárie inicia-se pela descalcificação nos
incisivos superiores decíduos logo após a sua erupção,
atingindo os molares e caninos decíduos se nenhum controle
for realizado10,11. Enquanto os quatro dentes incisivos
superiores decíduos são os mais afetados na CLPE, os
incisivos inferiores permanecem íntegros porque são protegidos
pela língua e banhados pela saliva das glândulas
submandibulares10,11, conforme observado na Figura 1.
Fatores de risco associados
A CLPE é uma doença mais comumente encontrada em
crianças que vivem na pobreza ou em condições de carência
econômica7,11,24-26,33-37, que fazem parte de minorias
étnicas e raciais12,38, filhos de mães solteiras39 e de pais
com menor escolaridade, em especial de mães analfabetas7,26,28,33,37,39,40.
Nessa população, a má nutrição ou a
subnutrição pré- e perinatal são causas de hipoplasia do
esmalte, a higiene oral normalmente é deficiente, provavelmente
a exposição ao flúor é insuficiente12,39, e há maior
preferência por alimentos com açúcar36,41.
Várias doenças estão associadas com a CLPE, entre elas
má nutrição9,24,34,35,42, asma, infecções de repetição,
doenças crônicas e uso de medicamentos9,30,40.
A má nutrição pode causar o aparecimento de hipoplasia
do esmalte e, do mesmo modo que a anemia por
deficiência de ferro, pode levar à redução da secreção
salivar e da sua capacidade de tamponamento7,11,24,35,42,43.
A desnutrição infantil ainda é um importante
problema no Brasil, especialmente nas Regiões
Norte e Nordeste44, o que poderia contribuir para que,
nessas regiões, a proporção de dentes cariados seja
sensivelmente mais alta. A média do índice ceo-d (número
de dentes decíduos cariados, extraídos ou com extra-
ção indicados e obturados) aos 5 anos na Região Norte é
cerca de 27% maior que a média da Região Sudeste15.
Também foi observado que a dieta do lactente brasileiro
é deficiente em ferro, monótona, com utilização freqüente
de biscoitos, espessantes, salgadinhos e açúcar44,
caracteristicamente alimentos de alta cariogenicidade.
O baixo peso ao nascer, incluindo a prematuridade, além
de predispor ao aparecimento de hipoplasia do esmalte e
alterações salivares30,43, favorece níveis elevados de coloniza
ção pelos estreptococos45. Nesses recém-nascidos, os
defeitos do esmalte encontram-se associados a enfermidades
gestacionais, tais como infecção materna, desordens
metabólicas (hipoxemia, deficiências nutricionais, hipocalcemia)
e à realização de procedimentos médicos (laringoscopia
e intubação endotraqueal)46.
No lactente, a presença de infecções, desordens metab
ólicas, toxicidade química e doenças hereditárias também
é causa do aparecimento de hipoplasia do esmalte11,30,43.
A gravidade da CLPE aumenta com a gravidade da
asma brônquica, tendo como principais causas o uso de
medicamentos beta2-agonistas, os quais diminuem a
secreção salivar, e o fato dos inaladores em pó e medicamentos
orais possuírem açúcar em sua formulação47.
Figura 1 - Padrão típico de cárie do lactente e do pré-escolar
acometendo extensamente os dentes superiores e
molares inferiores, sem afetar os dentes ântero-inferiores.
Presença de abscesso em incisivo central superior
direito decíduo. (Foto: cortesia Brian Palmer, DDS)
Aleitamento materno e cárie – Ribeiro NME e Ribeiro MAS
S202 Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(supl), 2004
Outras situações que diminuem o fluxo salivar e predisp
õem ao aparecimento de cárie são o diabetes melito e o
uso de outros medicamentos, como anti-histamínicos,
benzodiazepínicos, antieméticos, expectorantes e antiespasm
ódicos9.
Bicos, chupetas e mamadeiras
A mamadeira é um fator predisponente para CLPE
porque seu bico bloqueia o acesso da saliva aos incisivos
superiores, ao passo que os incisivos inferiores ficam
próximos às principais glândulas salivares e são protegidos
do conteúdo líquido pelo próprio bico e pela língua11.
O uso de mamadeiras à noite está associado à diminuição
do fluxo e da capacidade de neutralização salivar, o que
levaria os dentes a sofrerem estagnação dos alimentos e
exposição prolongada aos carboidratos fermentáveis9,30.
Adicionalmente, foi demonstrado que crianças com CLPE
dormem um menor número de horas por noite, acordam
com maior freqüência e recebem maior número de mamadeiras
para alimentação como meio de manejar os problemas
do sono48.
Apesar de o hábito de adoçar a chupeta estar associado
à colonização precoce por Streptococcus mutans em pré-
dentados49, uma revisão sistemática não achou associação
consistente entre uso de chupetas e desenvolvimento de
CLPE, independentemente do tempo de sua utilização e da
adição de adoçantes ou não50.
Papel cariogênico do leite humano, do leite bovino
e das fórmulas lácteas para alimentação infantil
Estudos em animais demonstraram que o leite bovino
não é cariogênico e, ao contrário, possui ação cariostática34,38,51.
Contudo, não há recomendação para seu uso
antes do primeiro ano de vida52,53. Além disso, as fórmulas
lácteas para alimentação infantil, mesmo aquelas sem
sacarose em sua formulação, demonstraram ser cariogê-
nicas54-56. O leite materno, quando comparado com o
leite bovino, tem baixo conteúdo mineral, maior concentra
ção de lactose (7 versus 3%) e menor teor de proteínas
(1,2 g/100 ml versus 3,3 g/100 ml), mas essas diferenças
são provavelmente insignificantes em termos de cariogenicidade30.
Birkhed et al. demonstraram que o leite humano e o
leite bovino são capazes de diminuir o pH da placa
dentária, porém menos que a sacarose, e que a fermenta
ção da lactose e do leite bovino é mais lenta. Além disso,
os estreptococos somente são capazes de aumentar a
fermentação da lactose após o contato freqüente com o
leite, podendo ser esta, segundo esses autores, uma das
razões para o desenvolvimento de cárie em dentes decí-
duos pelo aleitamento materno prolongado em livre demanda.
Entretanto, para os mesmos autores, o potencial
cariogênico do leite, sob condições normais, carece de
importância clínica, exceto quando da diminuição dos
fatores de defesa salivares, tal como ocorre durante o
sono e na presença de xerostomia57.
Aleitamento materno versus CLPE: razões e
contra-argumentações
Gardner et al.58, Kotlow59 e Brams et al.60 foram os
primeiros autores a associar a CLPE com o aleitamento
materno em relato de nove casos. Os autores preestabeleceram
um comportamento da odontologia frente ao
aleitamento materno: o de indicar a interrupção da
amamentação assim que a criança pudesse beber de uma
xícara, ao redor dos 12 meses10,19. Essas publicações são
passíveis de críticas por apresentarem um número muito
reduzido de casos, além do fato de que duas crianças
utilizavam mamadeira, e, para as sete restantes, não
existia menção de defeitos do esmalte, do meio bacteriano
e da composição da dieta61.
A maioria dos autores argumenta que a cárie encontra-
se associada ao aleitamento materno quando o padr
ão de consumo apresenta determinadas características,
como livre demanda, freqüência elevada de mamadas
ao dia, duração prolongada e, principalmente, mamadas
noturnas freqüentes, levando ao acúmulo de leite
sobre os dentes, o qual, associado à redução do fluxo
salivar e à ausência de limpeza, poderia provocar o
aparecimento de lesões10,16,18,19. Em oposição a esses
argumentos está o fato de o leite materno ser liberado por
ordenha diretamente no palato mole62, não sofrer estagna
ção ao ser sugado63 e ser difícil de ser quantificado
quanto ao volume ingerido pela criança, além de não
haver informações na literatura sobre o que é um padrão
atípico de consumo para crianças em aleitamento com
relação à freqüência alimentar44,52. Outra argumentação
freqüentemente encontrada na literatura é que a adição
de sacarose ao leite materno render-lhe-ia cariogenicidade7,61.
Essa afirmação é questionável porque, na prática,
é uma situação pouco provável de acontecer, visto que
essa adição deveria ser concretizada durante o ato de
mamar, ou seja, oferecendo-se à criança algo com açúcar
para comer ou beber durante ou imediatamente após o
aleitamento63.
Os vários estudos que investigam a associação entre
aleitamento materno e CLPE são apresentados na Tabela
1. A limitação mais importante presente em todos os
artigos encontrados que estudam uma possível associa-
ção entre leite materno e CLPE é a não-utilização de
conceitos de aleitamento materno adotados internacionalmente.
Alguns autores não apresentaram definição
para CLPE40,64, outros utilizaram múltiplas definições12
ou definições próprias65. Como pode ser observado, a
maioria dos autores não encontrou relação entre CLPE e
aleitamento materno ou sua duração12,25-27,40,65-70. Os
resultados encontrados freqüentemente contradizem-se
uns aos outros, e os achados nem sempre foram reproduzidos.
O mesmo foi observado por Valaitis et al. em
revisão sistemática de 151 artigos. Esses autores encontraram
associação considerada moderada entre aleitamento
materno e CLPE em apenas três estudos. Verificaram
que a qualidade das pesquisas é relativamente fraca,
e as variáveis relacionadas nas pesquisas foram de difícil
comparação porque suas definições essenciais eram pobres,
inconsistentes, ambíguas ou até ausentes, como,
Aleitamento materno e cárie – Ribeiro NME e Ribeiro MAS
Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(Supl), 2004 S203
Matee et al.71,
Tanzânia
Matee et al.66,
Tanzânia
Wendt et al.64,
Suécia
Matee et al.72,
Tanzânia
Wendt et al.40,
Suécia
Li et al.35,
China
al Ghanim
et al.73,
Arábia Saudita
Transversal, clínica de
saúde materno-infantil
FE: 1-2,5 anos
n = 442 (47 com CSLPE)
Caso-controle, clínica
de saúde maternoinfantil.
FE: 1-4 anos
116 com CLPE,
243 sem CLPE
Longitudinal,
comunidade de
Jönkönping.
FE: 1 ano,
reexaminados com 2 e
3 anos.
n = 629 sem cáries,
593 examinados aos 3
anos (159 com CLPE)
Caso-controle,
clínica materno-infantil.
FE: 1-2,5 anos
17 com CSLPE, 17 sem
CLPE
Coorte, comunidade de
Jönkönping.
FE: 3 anos
n = 289 (83 com CLPE)
Transversal,
pré-escolas de duas
comunidades rurais.
FE: 3-5 anos
n = 1.344
(1.106 com cáries)
Caso-controle,
três clínicas públicas e
três escolas infantis.
FE: 3-5 anos
231 sem CLPE,
215 com ceo-d > 8
Hipoplasia linear
do esmalte
Hipoplasia linear
do esmalte
Lanches noturnos;
uso da mamadeira
Contagem de colônias
de Streptococcus mutans
Imigrantes; uso de
mamadeira com líquidos
adocicados; higiene oral
deficiente; placa visível;
consumo de doces > 1
vez por semana
Classe social baixa;
desnutrição; presença
de hipoplasia
Modelo preditivo: placa
visível; primeira visita
odontológica aos 2 anos;
uso de leite com açúcar
na mamadeira; freqüência
de consumo de doces
Não foi demonstrada a prevalência do
AM. Alimentação complementar
iniciou entre 1 e 9 meses de idade.
Não foram entrevistadas as mães de
crianças sem CSLPE
Não há referência sobre a composição
do restante da dieta, da situação pré-
e perinatal e do estado nutricional;
não foi considerada a falta de higiene
dental. Outros estudos mostram que
o AM exclusivo é incomum e que a
introdução precoce de alimentos é a
regra nessa população, e a papa de
sorgo ou milho é quase a única
alimentação complementar ao leite
humano76,77
Definição de cárie ausente, sendo
referenciada para outros artigos
publicados por esses mesmos autores.
Apenas 7% estavam em AM com 1
ano de idade. Os autores sugerem
que o AM não causa cárie, mas
poderia estar associado com hábitos
dietéticos da criança e com a prática
educacional da família
Idem às observações relacionadas no
estudo de Matee et al., 1994
Definição de cárie ausente, sendo
referenciada para outros artigos
publicados por esses mesmos autores.
Somente 14 crianças estavam em AM
com 1 ano de idade
Sem referência ao tipo de dieta
complementar e à prevalência do AM
Autores/
local
Tipo de estudo
Faixa etária
Tamanho da amostra
Resultados Fatores de risco
significativos
associados à CLPE,
excluindo o
leite materno
Observações
Associação entre
CSLPE com AM
prolongado e
em livre demanda
Associação de CLPE
com AM noturno;
não houve associação
de CLPE com
duração do AM
CLPE associada
com AM por menos
de 2 meses e
acima de 1 ano
AM permite
a colonização por
Streptococcus
mutans
Não houve
associação entre
AM e CLPE
Aumento progressivo
da significância da
associação entre CLPE
e AM quanto maior
o tempo de AM
Associação
significativa de CLPE
com duração do AM
acima de 1 ano,
não confirmado
na análise de
regressão logística
AM = aleitamento materno; ceo-d = número de dentes decíduos cariados, extraídos (por cárie) ou obturados; CLPE = cárie do lactente e do pré-escolar;
CSLPE = cárie severa do lactente e do pré-escolar; FE = faixa etária pesquisada; n = número total da amostra.
Tabela 1 - Estudos que avaliaram a associação entre CLPE e aleitamento materno
Aleitamento materno e cárie – Ribeiro NME e Ribeiro MAS
S204 Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(supl), 2004
Tabela 1 - Estudos que avaliaram a associação entre CLPE e aleitamento materno (continuação)
Weerheijm
et al.25,
Holanda
Mattos-Graner
et al.74,
Piracicaba,
Brasil
Oulis et al.75,
Grécia
Ramos-Gomez
et al.12,
Estados Unidos
Dini et al.33,
Araraquara,
Brasil
Hallet et al.38,
Austrália
Rosemblatt
et al.67,
Recife, Brasil
Rajab et al.26,
Jordânia
Transversal,
La Leche Ligue em 25
cidades.
FE: 14-42 meses
n = 96 (14 com CLPE)
Transversal,
seleção randomizada
em creches públicas.
FE: 12-30 meses
n = 142
(27 com CLPE)
Coorte, Clínica de
odontopediatria,
Dental School,
Athenas University.
FE: 3-5 anos; 130 com
CLPE, 130 sem CLPE
Transversal, comunidade
de Stockton.
FE: < 6 anos; n = 220
Transversal,
25 escolas infantis
municipais.
FE: 3-4 anos
n = 245 (112 com CLPE)
Transversal,
comunidade.
FE: 4-6 anos
n = 3.375
(1.269 com CLPE)
Transversal, Centro de
Saúde Amauri de
Medeiros.
FE: 12-36 meses
n = 468 (133 com CLPE)
Transversal,
27 creches e escolas
infantis.
FE: 1-5 anos
n = 384
(184 com CLPE)
Baixa utilização
de flúor
Colonização por
Streptococcus mutans;
presença de placa
bacteriana; uso de
mamadeira com açúcar
ou cereal; início precoce
de refeições salgadas
Uso de mamadeira
para adormecer
Higienização;
freqüência alimentar
Classes sociais baixas
Uso de mamadeira, especialmente
além de 12 meses de
idade, ao dormir, à noite, ao
bebericar com freqüência durante
o dia; líquidos adocicados
na mamadeira; início do
uso do copo após 24 meses;
início de alimentos sólidos
após 9 meses; etnia (nãocaucasianos);
mães solteiras
Dieta cariogênica; número
de lanches
Uso de mamadeira adocicada
além de 1 ano; ato de dormir
com mamadeira à noite; freq
üência de consumo de lanches
com açúcar (acima de
três vezes ao dia); ausência
de escovação dentária; aus
ência de consulta odontoló-
gica; classes sociais baixas
Apresentou definições diferentes
para cárie do aleitamento
e para cárie
85% do grupo sem CLPE e 95% do
grupo com CLPE utilizavam
mamadeira
Cinco definições para CLPE. Em
razão disso, a prevalência de CLPE
variou de 12,3 a 30,5%
Definição de AM exclusivo
duvidosa: crianças aos 3 e 4 anos
de idade em AM exclusivo
A maioria das crianças estudadas
esteve em AM até o sexto mês,
sem especificar o número exato
Autores/
local
Tipo de estudo
Faixa etária
Tamanho da amostra
Resultados Fatores de risco
significativos
associados à CLPE,
excluindo o
leite materno
Observações
Não houve
associação entre
CLPE e AM
prolongado (média
de 22 meses)
Maior prevalência de
CLPE nas crianças
nunca amamentadas
ou em AM até 3 meses
quando comparadas
com AM por mais de 12
meses
AM por mais
de 40 dias inibe
o aparecimento
de CLPE
Não houve
associação entre
AM e CLPE
Risco maior para
as crianças nunca
amamentadas ou
em AM por mais
de 24 meses
Associação
significativa de CLPE
nas crianças nunca
amamentadas ou
com AM acima de 2
anos quando
comparadas com
AM por menos
de 24 meses
Não houve
associação entre
AM e CLPE
Não houve
associação entre
CLPE e
duração do AM
AM = aleitamento materno; ceo-d = número de dentes decíduos cariados, extraídos (por cárie) ou obturados; CLPE = cárie do lactente e do pré-escolar;
CSLPE = cárie severa do lactente e do pré-escolar; FE = faixa etária pesquisada; n = número total da amostra.
Aleitamento materno e cárie – Ribeiro NME e Ribeiro MAS
Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(Supl), 2004 S205
Huntington
et al.28,
Estados Unidos
Santos et al.65,
Rio de Janeiro,
Brasil
Cariño et al.27,
Filipinas
King et al.68,
China
Jose et al.69,
Índia
Vachirarojpisan
et al.37,
Tailândia
Dye et al.70,
Estados Unidos
Caso-controle em
famílias hispânicas,
Department of
Pediatric Dentistry,
Boston University.
FE: com CLPE, até 5
anos; sem cárie, sem
restrições de idade
n = 100 com CLPE,
60 sem CLPE
Transversal,
Ambulatório de Pediatria
do HUPE-UERJ.
FE: 0-36 meses
n = 80 (32 com CLPE)
Transversal,
comunidade.
FE: 2-6 anos
n = 993 (586 com CLPE)
Transversal, 33 creches.
FE: 0-4 anos
n = 353 (65 com CLPE)
Transversal,
13 creches.
FE: 8-48 meses
n = 513 (233 com CLPE)
Transversal, Distrito de
U-thong.
FE: 6-19 meses
n = 387
(226 com CLPE)
Transversal, dados do
censo de saúde e
nutrição.
FE: 2-5 anos
n = 4.236
(1.265 com CLPE)
Alimentação durante
o sono, freqüência de
escovação de até uma
vez ao dia, escovação
sem supervisão dos pais,
última consulta
odontológica dos pais por
período superior a 2 anos,
escolaridade dos pais
Placa visível
Idade de início
da escovação dentária
após 1 ano; freqüência
diária de lanches
Higiene oral deficiente;
classe social baixa;
mães com cáries;
lanches freqüentes
Classe social baixa; baixa
escolaridade materna;
níveis elevados de
Streptococcus mutans na
cavidade oral; alimentação
noturna com mamadeira
Etnia (hispânicos, negros);
baixa escolaridade dos
pais; classe social baixa;
baixo consumo de vegetais
ou frutas, lanches
freqüentes
Relata que o AM era a norma,
mas não especificou a prevalência
Apenas 4% da amostra
encontravam-se em AM acima
dos 6 meses de idade
99% das crianças estavam em AM em
livre demanda. Apesar de não haver
conceituação de AM, 5% da amostra
estavam em AM exclusivo
Relata que o AM era a norma, mas
não especificou a prevalência
Autores/
local
Tipo de estudo
Faixa etária
Tamanho da amostra
Resultados Fatores de risco
significativos
associados à CLPE,
excluindo o
leite materno
Observações
AM teve risco
significativo menor
para CLPE; crianças
não amamentadas
tiveram risco 2 vezes
maior para CLPE do
que seus irmãos
amamentados
Não houve
associação entre
AM e CLPE
Não houve
associação entre
AM e CLPE
Não houve
associação entre
AM e CLPE
Não houve
associação entre
AM e CLPE
Associação
significativa entre
CLPE e AM, não
confirmada por
análise de regressão
logística multivariada
Não houve
associação entre
AM e CLPE
Tabela 1 - Estudos que avaliaram a associação entre CLPE e aleitamento materno (continuação)
AM = aleitamento materno; ceo-d = número de dentes decíduos cariados, extraídos (por cárie) ou obturados; CLPE = cárie do lactente e do pré-escolar;
CSLPE = cárie severa do lactente e do pré-escolar; FE = faixa etária pesquisada; n = número total da amostra.
por exemplo, a definição de aleitamento materno em livre
demanda, exclusivo e noturno. Por fim, esses autores
concluíram que: (1) não há evidências fortes e consistentes
de associação entre aleitamento materno e desenvolvimento
de CLPE; (2) não existe um período específico
para o desmame, devendo-se encorajar as mulheres a
continuar a amamentação por tanto tempo quanto elas
desejarem; e (3) é necessário desenvolver estudos rigorosos
para levar mensagens públicas consistentes que
relacionem o aleitamento materno e o surgimento de
CLPE21.
Em outra revisão sistemática envolvendo 73 estudos,
Harris et al. identificaram 106 fatores de risco associados
significativamente com a prevalência ou a incidência de
CLPE. Dentre estes, apenas três estão relacionados ao
aleitamento materno (duração, freqüência e aleitamento
Aleitamento materno e cárie – Ribeiro NME e Ribeiro MAS
S206 Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(supl), 2004
noturno) e três ao aleitamento e/ou mamadeira (quando
utilizados para alimentar ou para cessar o choro da criança
à noite, para adormecer e duração superior a 18 meses).
Poucos foram os artigos de alta qualidade metodológica e
que utilizaram medidas de validação para os hábitos dieté-
ticos e de higiene oral. A maioria desses trabalhos mostrou
que as variáveis devem ser tratadas como indicadores de
risco, pois são apenas fatores de risco prováveis ou putativos,
e não foi capaz de estabelecer claramente uma relação
entre exposição e evento cárie. As associações com cárie
mais consistentes foram aquisição precoce da infecção
pelos estreptococos, dieta altamente cariogênica, escova-
ção dentária diária precária e hipoplasia do esmalte5.
Os seguintes argumentos têm-se apresentado como
contrários à associação entre o aleitamento materno e a
CLPE:
– Há evidências substanciais que relacionam os hábitos
alimentares à cárie dentária, sendo consenso geral que
o aumento na sua incidência seja resultado do processo
de civilização do homem, acarretando alterações nos
padrões de vida mais naturais9,18. Estudos em culturas
primitivas cuja norma era o aleitamento materno até os
18 a 36 meses, em livre demanda, inclusive à noite,
mostram prevalência extremamente baixa de cárie em
crianças61,78. Estudos clássicos mostram índices de
cárie de 0,5% em crianças samoanas79 e de 1,2% em
crianças esquimós80. Resultados similares foram achados
em estudos antropológicos, onde os crânios humanos
do período pré-neolítico (12.000 a.C.) não apresentavam
cáries dentárias, e os crânios do período neolítico
(12.000 a 3.000 a.C.) com dentes cariados pertenciam
predominantemente a pessoas idosas78. No exame de
1.344 dentes decíduos humanos pré-históricos de nativos
americanos de Dakota do Sul, Estados Unidos,
apenas 19 (1,4%) estavam cariados e somente três
apresentavam lesões extensas de cáries63. Na era
moderna, a prevalência encontrada em 16 comunidades
nativas americanas, de mesma cultura, foi de 54%81.
– Em povos que mantêm os hábitos de alimentação
ancestrais, a prevalência de cáries é baixa. Entretanto,
quando esses grupos entram em contato com a civiliza-
ção moderna e seus hábitos alimentares, os índices
aumentam drasticamente8.
– Os padrões alimentares das crianças têm mudado dramaticamente
nos últimos anos. O consumo de leite tem
diminuído, enquanto que o consumo de refrigerantes,
sucos e bebidas não-cítricas e de carboidratos tem
aumentado70,82. Esses hábitos foram relacionados com
o aumento da prevalência de CLPE82.
– O tempo de aleitamento materno exclusivo e de
aleitamento materno é maior em mulheres de melhores
classes sociais, com maior escolaridade83-85, em
mães de mais idade e com relacionamento estável52;
do mesmo modo, a higiene dental é mais adequada
nesse grupo12,39, contrariamente ao que se observa
com a prevalência de CLPE, mais comum em classes
menos privilegiadas. A introdução precoce de alimentos,
o uso de mamadeiras e a preferência por alimentos
doces são observados com maior freqüência nas
classes menos favorecidas36,41,44,52,86,87.
– A prevalência do aleitamento materno diminui com a
idade, apresentando índices muito baixos na faixa
etária dos 12 a 24 meses no Brasil44 e no mundo88,
contrariamente ao que ocorre com a prevalência de
CLPE12,27,65,67.
– Mesmo com um aumento na prevalência mundial do
aleitamento materno89 e de quatro vezes na sua mediana
nas três últimas décadas no Brasil90, a prevalência
de CLPE tem se mostrado constante ao longo dos
anos6,67,73.
– Os recém-nascidos pré-termo e de baixo peso, os quais
são de alto risco para CLPE, tendem a ter menor tempo
de aleitamento materno46,91,92, maior utilização de
mamadeira e maior consumo de açúcar46.
– Estudos demonstraram que o leite materno diminui o
risco de aparecimento de doenças, tais como gastrenterite,
infecções93, asma, doenças atópicas94 e diabetes
melito95,96, as quais também têm influência na nutrição
da criança. Logo, é de se pressupor que o leite materno
poderia proteger contra a cárie, pelo menor aparecimento
das doenças que contribuem para a fisiopatologia
da doença e pela menor utilização de medicamentos de
risco à cárie.
– O leite humano é caracterizado por um complexo sistema
de defesa que inibe o crescimento de vários microorganismos,
entre eles os estreptococos mutans97,98.
Os anticorpos IgA do leite podem interferir na coloniza-
ção dos estreptococos pioneiros e, conseqüentemente,
na colonização de outras bactérias residentes na boca.
Do mesmo modo, o conteúdo de nutrientes, a capacidade
de tamponamento e outros mecanismos de defesa
presentes no leite materno podem influenciar a microbiota
residente99.
– O leite materno contém uma mistura de oligossacarí-
deos complexa e única da espécie humana, presente
em quantidades ínfimas em pouquíssimos mamíferos,
que poderá agir num estágio inicial de processo infeccioso,
inibindo a adesão bacteriana às superfícies
epiteliais99. Com isso, pode-se supor que os estudos
que utilizaram lactose ou leites de outras espécies
animais não poderiam ter seus resultados extrapolados
para o leite materno, em razão de sua composição
muito diferenciada.
– Qualitativamente, foi demonstrado que o leite humano
não é cariogênico, pois a placa dental formada por ele é
diferente daquela formada pela sacarose. Além disso,
com o leite humano, não há perda mineral clinicamente
visível no esmalte, contrariamente ao que acontece com
a sacarose100.
– Experimentalmente, foi demonstrado que o leite humano
não é cariogênico porque não provocava queda
significativa no pH do esmalte em crianças sob aleitamento
materno, com idades entre 12 e 24 meses;
permitia um moderado crescimento de Streptococcus
sobrinus (ou seja, não inibia nem estimulava o crescimento
desse microrganismo); promovia a remineraliza
ção do esmalte por meio da deposição de cálcio e
fosfato em sua superfície; possuía capacidade tampão
muito pobre; e não causava, in vitro, descalcificação
do esmalte após 12 semanas. Porém, ao ser acrescen-
Aleitamento materno e cárie – Ribeiro NME e Ribeiro MAS
Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(Supl), 2004 S207
tada sacarose ao leite humano, havia o surgimento de
cárie em dentina em 3,2 semanas61.
Em resumo, constata-se que estudos relacionando a
CLPE com o aleitamento materno invariavelmente só observaram
os fatores inter-relacionados com o surgimento da
cárie, deixando de lado aqueles associados à amamenta-
ção. Muitos desses fatores atuam como variáveis de confus
ão, porque, do mesmo modo que interferem no aleitamento
materno, também têm influência no surgimento da cárie,
como pode ser observado esquematicamente na Figura 2.
Nessa figura foram agrupadas todas as situações anteriormente
discutidas neste artigo, com as setas cheias representando
um efeito promotor e as setas pontilhadas um
efeito inibidor para cada situação exposta.
Figura 2 - Fatores inter-relacionados no aleitamento materno e na CLPE
A
L
E
I
T
A
M
E
N
T
O
M
A
T
E
R
N
O
C
Á
R
I
E
Aumento da idade
Gastroenterite
Infecções respiratórias
Diabetes melito
Asma
Prematuridade
Baixo peso ao
nascer
Baixo nível socioeconômico
Baixa escolaridade
Menor faixa etária
Introdução precoce
de alimentos
(práticas inadequadas)
Estreptococos mutans
Açúcar
Açúcar
Genética
Uso de medicamentos
Alterações salivares
Má higiene dental
Estreptococo mutans
Chupetas
Mamadeiras
Estudos antropológicos
MÁ NUTRIÇÃO Hipoplasia
Fluorose
Mãe:
Posição oficial da Academia Americana de
Odontopediatria (AAPD)
Atualmente, a AAPD apóia as recomendações da Academia
Americana de Pediatria quanto ao aleitamento
materno (de pelo menos 1 ano). Entretanto, assinala que
a alimentação noturna freqüente por mamadeira, aleitamento
materno em livre demanda e uso freqüente de
copos antitransbordantes está associado, porém não
consistentemente implicado, com a CLPE. Recomenda
que as crianças não sejam colocadas para dormir com
mamadeira e que o aleitamento materno noturno em livre
demanda seja evitado após a erupção do primeiro dente.
Portanto, são necessárias pesquisas futuras sobre os
efeitos do aleitamento materno e do consumo de leite
humano na saúde oral e no crescimento dentofacial. É
Aleitamento materno e cárie – Ribeiro NME e Ribeiro MAS
S208 Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(supl), 2004
importante frisar que essa posição é ambígua e criticável,
porque a AAPD não inclui mais o aleitamento materno
entre os fatores de risco para cárie29. Além disso, não há
comprovação científica de que o leite humano é cariogê-
nico61, mesmo quando ingerido em livre demanda e
durante a noite63. Concomitantemente, a posição da
AAPD também pode gerar problemas práticos na condu-
ção e orientação dos pais daquelas crianças que acordam
chorando à noite para serem amamentadas, simplesmente
externando uma necessidade que deveria ser preenchida
para o bom desenvolvimento da criança. Por fim,
devido à natureza irreversível da cárie, um verdadeiro
teste em humanos poderia ser considerado antiético56.
Considerações finais
Apesar de não haver embasamento científico comprovando
a associação entre aleitamento materno e cárie,
muitos profissionais ainda duvidam da ausência de cariogenicidade
do leite humano, perpetuando o mito em que se
tornou essa associação. Acreditamos que a amamentação
noturna não deva ser desencorajada, assim como nenhuma
forma rígida de conduta alimentar deva ser adotada em
relação à criança em aleitamento. Nessa faixa etária, a
criança está se adaptando aos alimentos complementares,
ajustando-se a essas novas formas de alimentação e aprendendo
a regularizar seus horários. Portanto, deve-se estimular
o aleitamento materno exclusivo até os 6 meses,
mantendo-o pelo menos até os 2 anos de idade, sem
restrições de horários ou turnos, complementado com
outros alimentos adequados para o desmame.
Esta revisão permitiu concluir que não há evidências
científicas que comprovem que o leite materno está associado
com o surgimento de cárie. Essa relação é complexa
e confundida por muitas variáveis, principalmente infecção
por estreptococo mutans, hipoplasia do esmalte, ingestão
de açúcares em suas mais variadas formas e condições
sociais representadas pela educação e nível socioeconômico
dos pais.
Agradecimentos
Ao Dr. Brian Palmer, DDS, por sua presteza e humildade
em acolher prontamente nossas solicitações, e à Dra. Elsa
Giugliani e ao Dr. Joel Lamounier, pelas sugestões dadas
para a construção deste artigo.
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