A MEDICINA,
UM DOENTE QUE NÃO
SE RECONHECE COMO TAL?
François Choffat
Depois de um rápido crescimento, a medicina depara seus limites.
Seu preço se torna excessivo, seu domínio estende-se sobre a sociedade,
as melhorias da saúde no nível coletivo parecem insignificantes,
a pesquisa não avança, o público e os próprios médicos
se voltam para terapias ditas alternativas.
A medicina atravessa uma crise estrutural da qual é a última a tomar consciência.
A homeopatia, que persegue os mesmos objetivos buscados pela medicina,
tem outro ponto de vista com relação à doença e à saúde. seu olhar crítico
sobre a medicina permite que se compreendam as raízes da crise.
“As pessoas sadias são doentes que não se reconhecem como tais”, dizia o Dr. Knock. É preciso ser seu discípulo para dizer que a medicina está doente? Fala-se de doenças das sociedades ou das instituições; por que não se preocupar com a saúde da instituição médica? Dedico-me à homeopatia porque a medicina convencional não atende a todas as minhas expectativas de médico nem às de alguns pacientes. Desde que descobri outras terapias eficazes, não parei de me perguntas por que esses métodos não eram integrados ao ensino oficial e por que não eram usados pelos planos de saúde. cheguei à conclusão de que a medicina tem cada vez mais dificuldades de cumprir sua tarefa: ela se estafa, padece de um apetite que aqueles que subvencionam as suas necessidades não são mais capazes de satisfazer. Sob um exterior florescente, a medicina é na realidade um doente que não se reconhece como tal. Mas onde estão os sinais da enfermidade? Quais as suas causas?
Fruto de quinze anos de reflexão sobre esse tema, este livro alimenta o desejo de transcender a crítica da medicina convencional e a defesa da homeopatia. Sua ambição é explicar o que diferencia em profundidade essas duas modalidades terapêuticas, mostrar que elas se referem a sistemas de valores distintos, que se fundam em concepções antagônicas do homem, da vida e da morte.
A elucidação dessas diferenças é condição prévia de todo diálogo e de toda comparação. O doente deve ser o primeiro a saber o que pode exigir de cada uma dessas modalidades terapêuticas e, em função das circunstâncias e das possibilidades, ter assim condições de se dirigir a uma ou outra. A saúde que a medicina convencional lhe oferece não é a que lhe é proposta pela homeopatia. O próprio médico tem um papel muito diferente segundo aplique uma ou outra técnica. Arrolei alguns aspectos característicos da doença da medicina que serão apresentados neste primeiro capítulo sob quatro perspectivas: o domínio da medicina sobre a sociedade e a restrição individual disso decorrente; a desumanização do homem; uma reputação superestimada; as restrições econômicas. No fim do capítulo, evocarei sucintamente meu itinerário e exporei o que representam em minha prática a medicina e a homeopatia
Uma sociedade sob tutela
A instituição médica desfruta de um prestígio considerável. Seu impulso está associado com a idéia do progresso da humanidade. Com a civilização ocidental moderna, o homemj deixou de sofrer passivamente os caprichos da Providência; ele tomou nas mãos o seu destino. As grandes calamidades, como as situações de falta extrema de víveres e as epidemias, desapareceram dos países do hemisfério norte do planeta. Atribui-se à medicina um importante papel no recuo desses flagelos históricos e no aumento espetacular da expectativa de vida. Tendo substituído as consolações da religião pelas luzes da Razão, o homem ocidental fez da medicina sua última muralha contra a morte. Os espíritos esclarecidos, responsáveis pelo destino dos povos, pretenderam, ao tornar o ensino obrigatório, que cada um, mesmo contra a vontade, pudesse tirar proveito dos benefícios da Razão. A instrução tornou-se assim um direito e um dever. De igual modo convinha, sobretudo a partir de Pasteur, que as descobertas da medicina beneficiassem a todos. Ninguém deveria mais ignorar as regras da higiene, as vantagens da limpeza na prevenção das doenças, os proveitos de uma vida sadia, os perigos dos abusos e da imoderação.
A medicina mostrou-se muito eficaz no alívio e na resolução de certas doenças, e pouco a pouco o modelo médico se impôs como referência da saúde, repelindo em sua marcha triunfal as outras artes do cuidado, os curandeiros tradicionais e os remédios caseiros. Na esteira do direito à instrução, impôs-se pouco a pouco o ideal de um direito à saúde. A medicina adquira uma exclusividade oficial, o monopólio do discurso midiático, o poder sobre a política sanitária e, enfim, o direito de constranger os indivíduos em nome da saúde pública. Com o direito vincula-se o dever, e, para o bem da coletividade, foram impostos controles de todos os tipos, decretadas normas de higiene e tornadas obrigatórias as vacinações. Essas imposições à saúde por parte da medicina apresentaram como vantagem certa coerência das políticas sanitárias das sociedades industriais, coerência que se relfete nos consensos dos Estados de todo o mundo reunidos sob a égide da Organização Mundial de Saúde.
O reverso dos êxitos da medicina liga-se aos incovenientes característicos de todo monopólio. A ausência de contestação e de concorrência leva à perda da noção de relatividade dos valores adotados. A falta de distanciamento e de elementos de comparação afasta os questionamentos e as verificações, abrindo caminho a todos os excessos. A medicina impõe progressivamente suas normas e controles à sociedade, sem justificação, sem perspectiva global, sem limite nem contradição. Ela tem carta branca. Os efeitos disso são a crescente restrição dos indivíduos e o fato de a sociedade ser posta sob tutela.
A medicina torna-se passagem obrigatória para certo número de situações da vida. Não se pode mais nascer, crescer, entrar na escola, fazer amor, trabalhar ou parar de trabalhar, ter uma gripe sem a intervenção do médico. Não é mais possível nos sentirmos em boa saúde sem confirmação médica, sem estarmos seguros de que a nossa pressão arterial, a nossa taxa de glicose ou o nosso colesterol estão em conformidade com as prescrições oficiais. Através dos meios de comunicação, o público é alertado, educado, condicionado – e atemorizado – por informações cotidianas advindas da área da saúde. Ele é privado de sua saúde. A medicina estende o seu domínio sobre a sociedade moderna de maneira desmesurada. Em seu célebre panfleto, Némésis médicale, Ivan Illich traçou um quadro impiedoso dos perversos efeitos da medicina sobre a estrutura social.1
O serviço técnico da máquina humana
Na Europa, até os anos sessenta, a medicina vinculava-se mais com a tradição acadêmica do que com a técnica, sendo exigida dos futuros médicos uma formação literária porque, segundo se dizia, cuidar dos doentes é primordialmente uma atividade humanista que exige conhecimento da alma. Agora a formação do médico se tornou inequivocamente uma aprendizagem técnica, e a faculdade de medicina poderia ser uma escola de engenheiros da máquina humana. Conseqüência dessa concepção, a morte, pane derradeira da máquina, é um fim sem esperança, o fracasso definitivo do homem em sua tentativa de escapar à sua condição, a negação da vida e de seu sentido. A medicina encontra-se desamparada e sem resposta diante dessa morte que ela encontra todos os dias em sua prática.
O médico aprendeu a fixar no doente não mais um olhar de humanista para o seu alter ego, mas um olhar objetivo de cientista. O que o paciente sente não é importante, seu modo de vivenciar a doença, de adaptar-se a ela, de administrar e aliviar seus sofrimentos é ignorado. O médico deve evitar atribuir impor-tância ao que ele próprio sente na relação terapêutica, já que essas informações subjetivas não constituem dados científicos. A prática dos médicos que trabalham em hospital e dos especialistas está em conformidade com esse condicionamento. Em contrapartida, os clínicos gerais mantêm um distanciamento com relação à sua formação universitária e adotam uma visão subjetiva e pessoal do paciente, que lhes permite enfrentar de maneira pragmática alguns problemas não previstos pela teoria médica.
Nessas condições, como espantar-se com o fato de que os pacientes se sintam amiúde frustrados e se queixem de ser considerados objetos? Eles têm a impressão de não ser escutados, de não receber as explicações devidas sobre a sua doença. Além disso, perdem-se no labirinto das especialidades, já que não há apenas especialistas dedicados a apenas um único órgão, como também clínicas voltadas para o cuidado de um único sintoma, como a insônia ou a dor! A medicina – em conformidade com a sociedade que representa – dá-nos uma imagem fragmentada do homem, a imagem de uma máquina que é preciso alimentar e consertar.
Reputação superestimada
Do ponto de vista sociológico, a melhoria das condições de saúde se manifestou em primeiro lugar por um aumento espetacular da expectativa de vida nestes últimos séculos, a expectativa de vida no nascimento é a tradução da longevidade no registro preditivo. Até a Renascença, a longevidade média na Europa não ultrapassava os vinte anos, em virtude da imensa mortalidade infantil. Em 1800, ela era de quarenta anos; em 1980, de setenta e cinco anos, mas a progressão se esfuma e não acompanha o crescimento da medicalização da sociedade.2 Essa evolução deve-se primor-
dialmente a uma melhoria da alimentação – em termos quantitativos e, depois, qualitativos. O desmame do bebê é, historicamente, o período do crescimento mais perigoso a atravessar, pois a criança deve passar do leite materno a uma alimentação que, nas populações tradicionais, é a dos adultos. A mortalidade infantil diminui espetacularmente à medida que uma alimentação de transição é adotada. Vêm em seguida a melhoria das condições de higiene, a instalação de latrinas, a água potável, a salubridade do ambiente, o isolamento dos doentes contagiosos, o asseio no parto.
É crença comum que a medicina desempenhou um papel preponderante nessa evolução da demografia, mas na realidade a atividade médica não influenciou diretamente a mortalidade; foi sobretudo o recuo da miséria, da subalimentação, aliado a mudanças dos hábitos de vida, que mais modificou a nossa expectativa de vida. A medicina não teve senão uma influência mínima no recuo ou no desaparecimento de flagelos como a peste, a lepra, a varíola, o cólera, a malária ou a tuberculose (I. Illich). Essas epidemias começaram a regredir antes da introdução das vacinas ou da descoberta dos antibióticos. A medicina permitiu diminuir as complicações graves, quando não fatais, de infecções mais banais como a pneumonia, a meningite ou a escarlatina, mas essas afecções não tinham um efeito importante sobre a mortalidade. As vacinações talvez tenham acarretado o recuo de certas doenças, mas não modificaram significativamente a mortalidade global. Para tomar o exemplo da vacinação menos discutível, pode-se citar o caso da poliomielite; quando era muito grande a incidência dessa doença entre nós, nos anos cinqüenta, suas vítimas eram menos numerosas do que as dos acidentes de trânsito hoje. Os demógrafos avaliam que no passado a medicina teve pouca influência sobre o prolongamento da vida e constatam que não possui nenhuma em nossa época (I. Illich).
Apareceram novas doenças relacionadas com o exercício cotidiano da medicina. Os repetidos tratamentos com antibióticos não são capazes, às vezes, de combater certas infecções renitentes: otites, sinusites, bronquites, cistites etc. Os germes comuns mostram-se cada vez mais resistentes, e somos obrigados a recorrer a antibióticos cada vez mais fortes. A própria malária torna-se mais agressiva e resiste às nossas intervenções.
Nosso modo de vida favorece o desenvolvimento das doenças ditas da civilização. As obrigações profissionais, a insegurança social e afetiva, a competição, a pressa, as frustrações do consumo nunca satisfeito, uma alimentação excessiva e demasiado refinada e a poluição favorecem as doenças cardiovasculares, alguns cânceres, a esclerose múltipla, alergias, reumatismos, obesidade. Uma série de doenças anteriormente de pequena incidência, que a medicina não consegue prevenir e que não sabe curar. Apesar dos grandes investimentos em pesquisa, o câncer não recebe, estatisticamente, um cuidado melhor do que recebia há trinta anos atrás.
A medicina cria também a sua própria patologia; trata-se das chamadas doenças “iatrogênicas”, devida aos efeitos indesejáveis dos tratamentos, que representam entre dez e vinte por cento das hospitalizações (I. Illich). Por outro lado, sabe-se que mais da metade dos pacientes do clínico apresenta queixas que não correspondem a uma definição médica da doença; “eles não têm nada”, o que não os impede de sair da consulta com uma imensa receita de remédios. Será que eles são doentes imaginários ou será que a medicina é incapaz de compreender o seu mal, ficando assim aquém da tarefa que lhe foi atribuída pela sociedade?
Desde que terminei meus estudos, há vinte e cinco anos, vi surgirem muitas novidades terapêuticas, de uma engenhosidade muitas vezes notável. Alguns males são tratados de forma melhor, mas os grandes desafios lançados à medicina conservaram toda a sua atualidade. No nível do consultório clínico geral, e apesar do grande esforço publicitário dos laboratórios e da satisfação dos pesquisadores, não há nenhum progresso sensível: o conjunto da população não só não está menos doente como também não recebe um melhor cuidado. E temo que a AIDS se torne uma nova testemunha da impotência da medicina. Por último, o recurso maciço do público às “terapias naturais”, “complementares” ou “paralelas” é o sinal de um hiato existente entre o que é proposto pela medicina e as exigências dos usuários.
Referências:
1. Illich, Némésis médicale, l’expropriation de la santé. Para as obras cujas referências completas não são dadas nas notas, consultar a bibliografia, pp. 323ss. As referências são feitas às vezes no texto, entre parênteses e em itálico.
2. A. Sauer, Toubib or not toubib, état de la population et le système des soins em Suisse
Extraído de:
“Homeopatia e Medicina – Um Novo Debate”, François Choffat, São Paulo, Brasil, Edições Loyola, 1996. trecho: da página 11 à página 18.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário